Nos últimos dias tem sido notícia em diversos portais o julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.450, oriundo de um Mandado de Segurança impetrado em favor de Henrique Lopes Carvalho da Silveira.
Em suma, Henrique prestou concurso para a Polícia Militar de São Paulo e, após aprovação na primeira fase e submissão à avaliação médica, foi eliminado por portar uma tatuagem em sua perna direita. Segundo a banca examinadora, ou quem quer que seja o responsável no caso, a tatuagem violava a disposição editalícia que vedava, expressamente, que as tatuagens dos candidatos (i) atentassem "contra a moral e os bons costumes"; (ii) não fossem de "pequenas dimensões, sendo vedado cobrir regiões ou membros do corpo em sua totalidade"; (iii) estivessem "em regiões visíveis quando da utilização de uniforme de treinamento físico".
Embora as cópias eletrônicas disponibilizadas no sítio do STF não permitam ver com perfeição a tatuagem, me parece ser uma tatuagem relativamente grande e que, ao menos, apareceria com o uso do uniforme de treinamento (ipsis litteris, conforme o edital: "camiseta branca meia manga, calção azul-royal, meias brancas, calçado esportivo preto").
Na faculdade aprendemos um axioma jurídico que diz, em poucas palavras, que "o edital torna-se lei entre as partes". Em suma, se você pretende ingressar no serviço público deve respeitar as normas ali contidas e aceitá-las, sejam justas ou não.
Certo é que referido Edital, assim como boa parte dos demais, vedava ao concurseiro o ingresso no serviço público acaso portasse (é esse o termo correto?) uma tatuagem que fosse, novamente: (i) ofensiva; (ii) de grandes dimensões; (iii) em região visível, inclusive no ambiente "informal" de treinamento físico.
De se destacar também que falamos de uma corporação policial militar, onde um certo grau de exigência e formalidade deve sim ser respeitado, sobretudo em se tratando de vestimentas, aparência e, perdoe a expressão injusta (e até certo ponto prepotente), ar de seriedade.
Voltando ao Mandado de Segurança, foi concedida a ordem em favor do impetrante, determinando em suma que o concurseiro não fosse impedido de continuar com a disputa da vaga, sendo certo que ainda lhe faltavam outras etapas além do exame médico para eventual aprovação.
A bem da verdade a decisão foi revertida no Tribunal de Justiça de São Paulo, o qual entendeu que justamente na linha de que o edital criaria regras às partes, concluindo que "quem faz tatuagem tem ciência de que está sujeito a esse tipo de limitações".
Antes de entrar no mérito sobre o cerne da questão, ao menos na abordagem que pretendo tomar por aqui de (in)constitucionalidade, STF e aspectos jurídicos em si, gostaria de destacar que discordo dessa limitação pretérita e ambulante aos tatuados. Primeiro porque o simples fato de ser esta uma previsão comum em editais não torna a mesma justa ou injusta. Segundo porque, como espero que o Supremo se manifeste, possuir ou não tatuagem não te torna uma pessoa melhor ou pior.
O Tribunal argumentar que a regra editalícia vincula as partes em até entendo, embora discorde de inúmeros absurdos que chegam a mim como advogado (inclusive em mandados de segurança que já impetrei ou tomei conhecimento). Agora, dizer que quem se tatua assume desde o primeiro momento que jamais poderá ingressar em cargo, emprego ou função pública me incomoda sobremaneira.
Certo é que o Recurso subiu para o Supremo Tribunal Federal nos últimos meses e foi decidido, em plenário virtual, que a questão posta à discussão aqui representava repercussão geral sob o âmbito constitucional.
Um parêntese jurídico: O STF, enquanto última instância do judiciário brasileiro, tem atribuído filtros e mais filtros para poder julgar determinados processos (primeiro porque se não o fizer, a justiça será ainda mais lenta do que é hoje, segundo porque o leque de recursos cabíveis e matérias e se discutir já é, constitucionalmente, reduzido). O reconhecimento enquanto repercussão geral é importante exatamente nesse sentido, a partir dele o Supremo irá se manifestar nesse caso específico mas o resultado surtirá efeitos para todas as situações análogas.
As questões constitucionais discutidas nesses autos são duas:
1) Se é constitucional um edital apresentar limitações e vedações não previstas em lei;
2) Se é cognoscível a capacidade intelectual, física ou moral de alguém em virtude exclusivamente de uma tatuagem "grande" e à mostra no corpo e se esse tipo de impedimento seria constitucional.
É lícito diferenciarmos João de Maria pelo fato do primeiro possuir uma tatuagem aparente e a segunda não? É justo desclassificarmos João em um concurso público sendo ele comprovadamente mais apto para o serviço pelo simples fato de portar uma tatuagem em região visível do corpo?
O relator do processo, Ministro Luiz Fux, a meu ver quem costuma ser mais sensato na Suprema Corte, teria indicado em seu voto que seguirá pela manutenção da jurisprudência que veda requisitos em editais que não estejam contidos em leis. Entretanto, já demonstrou que vai julgar também a particularidade levantada neste caso, qual seja, a restrição imposta somente a certos tipos de tatuagens, mesmo que baseado em previsão legal.
Seria este o viés constitucional verificado pelo julgador.
A meu ver, o julgamento no Supremo deve girar justamente sobre esse aspecto, ou seja, se é constitucional restringir o acesso de populares ao serviço público apenas pelo uso de certos tipos de tatuagens.
O objetivo principal deste post era justamente esclarecer esta questão. Não, o STF ainda não vedou ou permitiu o ingresso de pessoas tatuadas em cargos, empregos ou funções públicas, embora estejam sendo divulgadas em notícias decisões que não existem e sequer estão próximas de serem proferidas. A decisão publicada em 10 de setembro passado apenas recebeu o Recurso apresentado, trazendo ao escopo do Tribunal tal decisão. Mais nada.
Qual o principal reflexo disso tudo? Pode acabar com aquela falácia de que o edital torna-se regra absoluta a todos os envolvidos no concurso público. Especialmente quando isso infringir a norma constitucional de alguma forma.
Pro inferno com as análises de cláusulas editalícias e sim pra aplicação da Constituição num sentido mais amplo, garantindo tratamento igual às pessoas independente do uso de tatuagens ou não, sejam elas grandes, pequenas, coloridas, p&b, old school, feias, bonitas... Tanta coisa importante no mundo e as pessoas com cabeça pequena quanto a uma mancha de tinta na pele dos outros demonstrar caráter ou falta dele.
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