domingo, 15 de novembro de 2015

Samarco, mineração e como o contraditório pode ser importante pra te fazer enxergar as coisas de forma diferente.

O assunto da última semana em todo o Brasil foi o rompimento da barragem de rejeitos na mina da Samarco na cidade de Mariana, interior daqui de Minas Gerais.

Não vou tecer noções históricas, nem detalhes do acidente. Existem jornais demais por aí que estão fazendo isso (ou que deveriam, na verdade). Vou me ater única e exclusivamente às minhas opiniões sobre isso tudo, mesmo porque esse blog é um espaço para, pasme, eu fazer isso.

Sei que você vai discordar, vai se sentir compelido a me xingar. E fico até certo ponto feliz por isso. Seria no mínimo estranho eu tomar a postura de vir aqui ressaltar a importância do contraditório e me negar a ler opiniões contrárias, mesmo porque tudo que escreverei aqui é, pra ser gentil, polêmico e fora daquilo que você tem lido por aí.

Sobre o rompimento da barragem em si. Sim, foi uma tragédia monstruosa, talvez a maior de todos os tempos em solo nacional, sobretudo sob o aspecto ambiental. Mas foi um acidente.

Sim, foi um acidente. Lide com isso.

Se você quer tratar isso enquanto crime, ok. Mas tenha a prudência de tratar como um crime ambiental e não como crime lato sensu.

Somente aqui em Minas Gerais temos dezenas de minas e de barragens de rejeitos, como a que rompeu em Mariana. De quantos acidentes ouvimos falar? Pouquíssimos. Não quer dizer que não aconteçam, quer dizer que são, efetivamente, acidentes.

A título exemplificativo, alguém lembra do que aconteceu em Fukushima? Falo daquele acidente envolvendo uma usina nuclear japonesa em 2011, iniciado justamente em virtude de um acidente (à época tudo se originou de um terremoto). Foi o maior acidente nuclear da história da humanidade desde Chernobil. O último levantamento (em outubro de 2015) demonstrou cerca de 16.000 mortes e a evacuação de cerca de 160.000 pessoas da região em virtude da radiação.

Independente da causa, foi um acidente assim como foi em Mariana.

Ninguém (empresário capitalista, engenheiro responsável, acionista minoritário, governante corrupto, político de oposição) esperava esse acidente. Aliás, a própria etimologia da palavra indica "um acontecimento anormal, imprevisto e de fatalidade".

É acidente por que? Porque todas as mineradoras para atuar no Brasil precisam passar por um processo de licenciamento tão burocrático quanto exigente. Todas (absolutamente todas) medidas de segurança devem ser apresentadas e aprovadas pelos mais diversos órgãos. Além disso, planos de expansão, de obras e limites de extração tem de ser aprovados. Por mais de um órgão, cada um com uma natureza e foco diferente.

Se você quer atribuir crime à conduta da Samarco, ou das sócias BPH e Vale, então convenhamos, atribua crime também à conduta dos órgãos que fiscalizam (ou deveriam fazer), porque, amigos, sabemos que crimes são praticados por ação ou por omissão. Autorizar o funcionamento de um empreendimento daquela magnitude que depende legalmente de planos de controle e cuidado extremamente apurados, sem ter certeza que eles existem (e são eficazes) tem de ser crime.

Voltando à questão do acidente, vamos tocar num aspecto interessante? Tenho visto jornais e justiceiros facebookianos tratando o lucro da Samarco como absurdo. Não sei se a fonte é tão confiável assim, mas se tratando de um jornal, vou arriscar: 2,8 bilhões de reais. Dois bilhões e oitocentos milhões de reais de lucro no ano de 2014.

Dinheiro demais, certo?

Sim! Mas é importante destacar que os lucros das empresas mineradoras são grandes porque condizem com o investimento feito anos atrás. Toda aquela estrutura e os funcionários exigem investimentos pesados. Se o investimento não fosse pra dar retorno, tenho certeza que os acionistas manteriam a grana em locais mais seguros.

Mas sabem o quanto já foi apurado como desviado da Petrobrás no escândalo do Petrolão? Segundo o Ministério Público R$ 1,1 bilhão, embora o valor possa chegar a R$ 10 bilhões.

Vivemos num país que considera absurdo uma empresa lucrar 2 bilhões, mas é "normal" um desvio por corrupção de metade desse valor (lembrando que o valor pode chegar a CINCO vezes esse lucro).

Daí vemos uma grande massa de indignados com o acidente da Samarco e de repente já está todo mundo se intitulando especialista em alguma coisa e julgando a empresa por, pasmem, ser próspera e lucrativa. Absurdo pra mim é saber que a Petrobrás, uma empresa bem maior que a Samarco, ser utilizada para maracutaias políticas desse montante e sermos obrigados a taxar a empresa privatizada como vilã por ser lucrativa.

Enfim, lucros à parte, tenho visto muita gente criticando a atividade mineradora em geral em virtude do acidente. Me parece assustador ler e ouvir gente instruída criticando a mineração. Sejamos francos, você só está me lendo nesse momento por conta da mineração. Você só vai trabalhar de carro/ônibus por conta da mineração. Você só acorda de manhã pra ir a aula/trabalho por conta da mineração. Mais: a média de consumo per capita no Brasil de produtos siderúrgicos é de 126 quilos por brasileiro.

Se quem incentiva o tráfico de animais é justamente quem adquire a fauna silvestre, então quem motiva a atividade minerária é justamente quem dela se utiliza. Seguindo essa lógica, a minha e a sua mão estão sujas com a mesma lama que destruiu a comunidade de Bento Rodrigues e o Rio Doce.

E se existe uma demanda que justifica os gastos e os lucros, também existe aquela que "força" a extração em locais indesejáveis. Pergunte pra qualquer agente minerador se ele preferia extrair sua renda de uma área com belezas naturais ou população já instalada ou em outra área erma e distante. Infelizmente a extração acarreta em impactos, assim como a de petróleo volta e meia atinge o meio ambiente (de maneira até mais agressiva e perigosa em muitos casos).

Honestamente? Minha parte favorita disso tudo é "uai, mas bastou a Vale ser privatizada que virou isso daí".

Pri-va-ti-za-da?

Ixi, será mesmo? Basta uma simples pesquisa na Wikipedia e... Surpresa! A Valepar S.A., detém 53,3% do capital votante da Vale, representante de 33,6% do capital total.

E a Valepar? Litel/Litela (fundos de investimentos administrados pela Previ) com 49% das ações, Bradespar com 17,4%, Mitsui com 15%, BNDESpar com 9,5%, Elétron (Opportunity) com 0,03%.

A Previ é a maior acionista da Controladora da Valepar. Opa, quem é a Previ? Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil, cara-pálida. Opa, pera, o maior acionista da Valepar é um Fundo de Pensão do Governo? Calma que fiquei confuso agora... Mas não era privatizado?

Calma que piora... O BNDES tem 5,3% das cotas da Vale, mais 9,5% da Valepar por meio do BNDESpar. Mais a golden share.

Falando em Vale, portanto, temos 33,6% do capital da Vale com a Valepar, mais 5,3% com o BNDES, mais a golden share. Tudo considerado, portanto, mesmo "privatizado" o governo, através dos fundos de pensão e do próprio BNDES detém maioria do capital da Vale, inclusive do capital votante (ações ordinárias). E, o grande trunfo, a golden share, que representa o poder de veto do governo em escolhas capitais da empresa, como por exemplo na indicação de presidente e outras demandas mais burocráticas e administrativas (e vitais).

Vamos estender então o raciocínio daqueles que acham que a Vale é responsável pelo erro da Samarco por ser acionista? Ok, então os acionistas da Vale também respondem, já que a empresa é uma ficção jurídica, tendo de ser representada por sócios e acionistas, certo? Você já ouviu alguém falando que o governo tem alguma parcela de culpa nessa situação toda? Acho que não, né?

Voltando a tocar no assunto do lucro, sejamos francos... Uma empresa do porte da Samarco e com toda aquela margem de lucro, vai realmente se arriscar em causar (conscientemente) um acidente da magnitude do que aconteceu? Arrisco a dizer que a manutenção mais cara possível pra uma barragem como aquela justificaria totalmente o risco de um acidente dessas proporções e toda mídia negativa que a empresa tem passado e ainda vai passar.

Ninguém constrói uma barragem daquele porte com intenção de que ela se rompa.

Certeza que se fosse assim o lucro da Samarco e de outras mineradoras seria ainda maior, porque elas gastam milhões de reais por ano para mantê-las seguras e íntegras, o que, como vimos, infelizmente não impede que acidentes aconteçam.

Mas, e é importante que se frise que esta é mais uma opinião minha, somente podemos falar em culpa (descaso, negligência, omissão, burrice, falha, ou como você preferir chamar) da Samarco com apuração técnica e pericial. Julgar sem estudo e sem comprovação é errado e temeroso.

Por fim, a toxidade da lama que vem descendo é questionável.

Sim, rejeito de minério de ferro não é, em essência, tóxico.

A lama é composta por ferro, sílica, amido gelatinizado com NaOH, amina e soda. Não quer dizer que no nível de lama que desceu não teremos impacto algum sobre fauna e flora... Mas, absolutamente, a lama não é tóxica na acepção usual da palavra (e como setores da imprensa têm divulgado).

Concluindo, por óbvio.

Óbvio que estou chocado com o acidente e em luto pelas famílias atingidas e, principalmente, pela natureza que está sendo efetivamente impactada. Fauna, flora e, especificamente, o Rio Doce e seus afluentes. Isso é totalmente lamentável e deve ser indenizado, muito embora continue achando que não existe dinheiro que conseguirá recuperar tudo que foi perdido.

Espero que a Samarco tenha o discernimento necessário para tratar de todos aqueles afetados pelo acidente, até porque tem plenas condições de assim proceder até em virtude de todo lucro que já produziu desta mina.

Agora, que as pessoas comecem a tratar as coisas com mais responsabilidade e passem a analisar o aspecto de uma forma um pouco menos imediatista. Basta ver a reação da prefeitura de Mariana e do governo de Minas a respeito das atitudes tomadas pela Samarco ao longo da relação entre as partes, dos ganhos que a empresa dá à comunidade local (empregos, retorno de impostos, políticas públicas...). Trato a mineração como um mal necessário. Sem ela não teríamos nada do que temos hoje no âmbito tecnológico, portanto, criticar a atividade por criticar não passa de hipocrisia. Nesse aspecto, coerentes pra mim são os veganos apenas.

Como disse no começo do texto, verdade inquestionável e sem oposição geralmente é burra e mentirosa. Busquem se informar um pouco pelo outro lado também. Nem a Samarco está 100% correta, nem aqueles que buscam exorcizar o "mal" da mineração do nosso estado que, pasmem, carrega no nome esta origem.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

STF, tatuagens e como uma mentira mal contada vira uma meia verdade.

Nos últimos dias tem sido notícia em diversos portais o julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.450, oriundo de um Mandado de Segurança impetrado em favor de Henrique Lopes Carvalho da Silveira.

Em suma, Henrique prestou concurso para a Polícia Militar de São Paulo e, após aprovação na primeira fase e submissão à avaliação médica, foi eliminado por portar uma tatuagem em sua perna direita. Segundo a banca examinadora, ou quem quer que seja o responsável no caso, a tatuagem violava a disposição editalícia que vedava, expressamente, que as tatuagens dos candidatos (i) atentassem "contra a moral e os bons costumes"; (ii) não fossem de "pequenas dimensões, sendo vedado cobrir regiões ou membros do corpo em sua totalidade"; (iii) estivessem "em regiões visíveis quando da utilização de uniforme de treinamento físico".

Embora as cópias eletrônicas disponibilizadas no sítio do STF não permitam ver com perfeição a tatuagem, me parece ser uma tatuagem relativamente grande e que, ao menos, apareceria com o uso do uniforme de treinamento (ipsis litteris, conforme o edital: "camiseta branca meia manga, calção azul-royal, meias brancas, calçado esportivo preto").

Na faculdade aprendemos um axioma jurídico que diz, em poucas palavras, que "o edital torna-se lei entre as partes". Em suma, se você pretende ingressar no serviço público deve respeitar as normas ali contidas e aceitá-las, sejam justas ou não.

Certo é que referido Edital, assim como boa parte dos demais, vedava ao concurseiro o ingresso no serviço público acaso portasse (é esse o termo correto?) uma tatuagem que fosse, novamente: (i) ofensiva; (ii) de grandes dimensões; (iii) em região visível, inclusive no ambiente "informal" de treinamento físico.

De se destacar também que falamos de uma corporação policial militar, onde um certo grau de exigência e formalidade deve sim ser respeitado, sobretudo em se tratando de vestimentas, aparência e, perdoe a expressão injusta (e até certo ponto prepotente), ar de seriedade.

Voltando ao Mandado de Segurança, foi concedida a ordem em favor do impetrante, determinando em suma que o concurseiro não fosse impedido de continuar com a disputa da vaga, sendo certo que ainda lhe faltavam outras etapas além do exame médico para eventual aprovação.

A bem da verdade a decisão foi revertida no Tribunal de Justiça de São Paulo, o qual entendeu que justamente na linha de que o edital criaria regras às partes, concluindo que "quem faz tatuagem tem ciência de que está sujeito a esse tipo de limitações".

Antes de entrar no mérito sobre o cerne da questão, ao menos na abordagem que pretendo tomar por aqui de (in)constitucionalidade, STF e aspectos jurídicos em si, gostaria de destacar que discordo dessa limitação pretérita e ambulante aos tatuados. Primeiro porque o simples fato de ser esta uma previsão comum em editais não torna a mesma justa ou injusta. Segundo porque, como espero que o Supremo se manifeste, possuir ou não tatuagem não te torna uma pessoa melhor ou pior. 

O Tribunal argumentar que a regra editalícia vincula as partes em até entendo, embora discorde de inúmeros absurdos que chegam a mim como advogado (inclusive em mandados de segurança que já impetrei ou tomei conhecimento). Agora, dizer que quem se tatua assume desde o primeiro momento que jamais poderá ingressar em cargo, emprego ou função pública me incomoda sobremaneira.

Certo é que o Recurso subiu para o Supremo Tribunal Federal nos últimos meses e foi decidido, em plenário virtual, que a questão posta à discussão aqui representava repercussão geral sob o âmbito constitucional.

Um parêntese jurídico: O STF, enquanto última instância do judiciário brasileiro, tem atribuído filtros e mais filtros para poder julgar determinados processos (primeiro porque se não o fizer, a justiça será ainda mais lenta do que é hoje, segundo porque o leque de recursos cabíveis e matérias e se discutir já é, constitucionalmente, reduzido). O reconhecimento enquanto repercussão geral é importante exatamente nesse sentido, a partir dele o Supremo irá se manifestar nesse caso específico mas o resultado surtirá efeitos para todas as situações análogas.

As questões constitucionais discutidas nesses autos são duas:
1) Se é constitucional um edital apresentar limitações e vedações não previstas em lei;
2) Se é cognoscível a capacidade intelectual, física ou moral de alguém em virtude exclusivamente de uma tatuagem "grande" e à mostra no corpo e se esse tipo de impedimento seria constitucional.

É lícito diferenciarmos João de Maria pelo fato do primeiro possuir uma tatuagem aparente e a segunda não? É justo desclassificarmos João em um concurso público sendo ele comprovadamente mais apto para o serviço pelo simples fato de portar uma tatuagem em região visível do corpo?

O relator do processo, Ministro Luiz Fux, a meu ver quem costuma ser mais sensato na Suprema Corte, teria indicado em seu voto que seguirá pela manutenção da jurisprudência que veda requisitos em editais que não estejam contidos em leis. Entretanto, já demonstrou que vai julgar também a particularidade levantada neste caso, qual seja, a restrição imposta somente a certos tipos de tatuagens, mesmo que baseado em previsão legal. 

Seria este o viés constitucional verificado pelo julgador.

A meu ver, o julgamento no Supremo deve girar justamente sobre esse aspecto, ou seja, se é constitucional restringir o acesso de populares ao serviço público apenas pelo uso de certos tipos de tatuagens.

O objetivo principal deste post era justamente esclarecer esta questão. Não, o STF ainda não vedou ou permitiu o ingresso de pessoas tatuadas em cargos, empregos ou funções públicas, embora estejam sendo divulgadas em notícias decisões que não existem e sequer estão próximas de serem proferidas. A decisão publicada em 10 de setembro passado apenas recebeu o Recurso apresentado, trazendo ao escopo do Tribunal tal decisão. Mais nada.

Qual o principal reflexo disso tudo? Pode acabar com aquela falácia de que o edital torna-se regra absoluta a todos os envolvidos no concurso público. Especialmente quando isso infringir a norma constitucional de alguma forma.

Pro inferno com as análises de cláusulas editalícias e sim pra aplicação da Constituição num sentido mais amplo, garantindo tratamento igual às pessoas independente do uso de tatuagens ou não, sejam elas grandes, pequenas, coloridas, p&b, old school, feias, bonitas... Tanta coisa importante no mundo e as pessoas com cabeça pequena quanto a uma mancha de tinta na pele dos outros demonstrar caráter ou falta dele.