"Nós, os filósofos, não temos a liberdade de separar o corpo da alma, como faz o povo, e menos liberdade ainda temos de separar a alma do espírito. Não somos rãs pensadoras, não somos aparelhos registradores com entranhas figorificadas - devemos incessantemente dar à luz nossos pensamentos na dor e maternalmente dar-lhes o que temos em nós de sangue, de coração, de ardor, de alegria, de paixão, de tormento, de consciência, de fatalidade.
A vida consiste, para nós, em transformar sem cessar em claridade e em chama tudo o que somos e também tudo o que nos toca. Não podemos fazer de outra maneira. Quanto à doença, não seríamos tentados a perguntar se podemos passar sem ela? Só o grande sofrimento é o derradeiro libertador do espírito, é ele que ensina a grande suspeita, que faz de cada U um X, um X verdadeiro e autêntico, quer dizer a ante-penúltima letra antes da última... Só o grande sofrimento, esse demorado e lento sofrimento que leva seu tempo e chega a nos consumir de alguma forma como que queimados por lenha verde, nos obriga, a nós filósofos, a descer até nossas últimas profundezas e a nos desfazer de todo bem-estar, de todo meio véu, de toda doçura, de todo meio-termo onde tínhamos talvez colocado até então nossa humanidade.
Duvido muito que semelhante sofrimento nos torne "melhores"; - mas sei que nos torna mais profundos. Que lhe oponhamos nosso orgulho, nossa ironia, nossa força de vontade, a exemplo do pele-vermelha que, embora horrivelmente torturado, se vinga de seu carrasco com injúrias, ou que nos retiremos, diante do sofrimento, para o nada dos orientais - a que chamam de Nirvana - na resignação muda, rígida e surda, no esquecimento e na anulação de si: retorna-se sempre como outro homem desses perigosos exercícios de domínio de si, com alguns pontos de interrogação a mais, antes de tudo com a vontade de fazer doravante mais perguntas que então, com mais profundidade, rigor, duração, maldade e silêncio. Trata-se de um efeito da confiança na vida: a própria vida se tornou um problema. - Mas não se julgue que tudo isso o tornou necessariamente misantropo.
Mesmo amar a vida ainda é possível - apenas se passa a amar de maneira diferente. É como o amor por uma mulher de quem se suspeita... Entretanto, o encanto de tudo o que é problemático, a alegria causada pelo X são demasiados grandes nos homens mais espiritualizados e mais intelectuais, para que esse prazer não paire incessantemente como uma chama clara sobre todas as misérias do que é problemático, sobre todos os perigos da incerteza, até mesmo sobre os ciúmes do apaixonado. Nós conhecemos uma felicidade nova..."
Nietzsche, em "A Gaia Ciência".
Como dizem, faz pensar...
Boa semana a quem estiver lendo.
Em tempo, Feliz Natal e um 2009 melhor que 2008 (como se fosse difícil...).
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Listening to: Matanza - Whisky Para Um Condenado
via FoxyTunes
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Um comentário:
Pois é brother! Belo texto esse aí que tu postou, como antigo pessimista que sou , antigamente um texto desses me faria querer cortar os pulsos heiauhei mas agora , mais maduro , enxergo este texto como uma ferramenta que auxilia o entendimento de quem somos e o que os outros são ehiauehauie
abração cara! Tudo de bom pra você no Natal e no Ano Novo!
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